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Segundo alguns filósofos, as sociedades de- quanto à formação do caráter de seus filhos. Visto que
vem se organizar para dar segurança aos indiví- mesmo uma ‘delegação’ psiquicamente interessante das
duos e preservar a maior parte dos direitos natu- crianças só pode ocorrer no âmbito das razões, os indiví-
rais, com destaque para as liberdades individuais. duos em crescimento têm, em princípio, uma chance de
No texto a seguir, o filósofo e sociólogo alemão responder e de se libertar retroativamente. Eles podem
Jürgen Habermas (1929-) põe em questão uma equilibrar a assimetria da dependência infantil de modo
possibilidade contemporânea decorrente das no- retrospectivo e se libertar dos processos de socialização
vas tecnologias: a programação eugênica. Ela tolhe que limitam a liberdade por meio de uma renovação
ou não a liberdade individual? crítica da gênese. Até mesmo fixações neuróticas podem
ser solucionadas analiticamente pela reelaboração da
Liberdade e eugenia visão adquirida das coisas.
“Em sociedades liberais, todo cidadão tem o mes- É justamente essa chance que não existe no caso de
mo direito de seguir seus planos de vida individuais ‘da uma fixação genética, que os pais efetuaram conforme
melhor maneira possível’. Esse espaço ético de liberdade suas preferências pessoais. Uma intervenção genética não
para fazer o melhor de uma vida que pode fracassar abre o espaço de comunicação para dirigir-se à criança
também é determinado por capacidades, disposições e planejada como uma segunda pessoa e incluí-la num
qualidades condicionadas geneticamente. Com vistas processo de compreensão. A partir da perspectiva do
à liberdade ética de levar uma vida própria sob condi- indivíduo em crescimento, não se pode rever uma de-
ções orgânicas iniciais não escolhidas por ela mesma, terminação instrumental como um processo patogênico
a pessoa programada encontra-se, inicialmente, numa da socialização por meio da ‘apropriação crítica’. Esta
situação que não é diferente da pessoa gerada de forma não permite a um adolescente, que lança um olhar re-
natural. Contudo, uma programação eugênica de qua- trospectivo para a intervenção pré-natal, um processo
lidades e disposições desejáveis suscita considerações de aprendizagem revisório. O confronto descontente com
morais sobre o projeto, quando ela instaura a pessoa a intenção geneticamente fixada de uma terceira pessoa
em questão num determinado plano de vida, portanto não tem solução. O programa genético é uma realidade
quando a restringe especificamente em sua liberdade muda e, em certo sentido, irreplicável; pois aquele que
de escolha de uma vida própria. [...] está insatisfeito com as intenções geneticamente fixadas
não pode, como as pessoas nascidas naturalmente, se
No caso de uma intenção da qual o indivíduo se relacionar com suas aptidões (e deficiências) no decorrer
‘apropriou’ assim dessa forma, pode não ocorrer um de uma história de vida cuja apropriação foi refletida e
efeito de alienação da própria existência psíquico-cor- cuja continuação foi voluntária, de maneira que reveja
poral, nem uma limitação correspondente da liberdade sua autocompreensão e encontre uma resposta produtiva
ética para se conduzir uma vida ‘própria’. Por outro lado, para sua situação inicial. De resto, essa situação asse-
não podemos excluir a possibilidade de casos dissonantes melha-se à do clone, que é privado de um verdadeiro
enquanto não pudermos estar seguros de que uma har- futuro próprio pelo olhar modelador voltado à pessoa e
monização entre as intenções próprias e as alheias está à história de vida de um ‘irmão gêmeo’ tardio.
garantida. Em casos de intenções dissonantes, percebe-se
que o destino natural e o determinado pela socialização As intervenções eugênicas de aperfeiçoamento pre-
distinguem-se num aspecto moralmente relevante. Os judicam a liberdade ética na medida em que submetem
processos de socialização somente se dão na ação comu- a pessoa em questão a intenções fixadas por terceiros,
nicativa e desenvolvem sua força formadora no âmbito que ela rejeita, mas que são irreversíveis, impedindo-a
de processos de compreensão e decisões, que, por parte de se compreender livremente como autor único de sua
das pessoas adultas de referência, também se unem a própria vida. [...]"
razões internas mesmo quando o ‘espaço das razões’
ainda não se tiver aberto à criança, num determinado HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. Trad. Karina Jannini.
estágio de seu desenvolvimento cognitivo. A estrutura São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 84-88.
interativa de processos de formação, em que a criança
sempre assume o papel de uma segunda pessoa, torna Eugênico: relativo à eugenia, aperfeiçoamento da espécie via seleção genética
fundamentalmente ‘contestáveis’ as expectativas dos pais e controle da reprodução.
Patogênico: relativo à patogenia, modo de origem ou de evolução de uma doença.
Veja respostas e orientações ATIVIDADES
no Manual do Professor.
ANALISAR DEBATER
1. Segundo Habermas, há um conjunto de problemas éti- 2. Debata com os colegas a questão da eugenia, levando
cos que decorreriam da aplicação de um programa de em consideração os aspectos positivos e os negativos
eugenia. Aponte quais são esses problemas em relação de uma política eugênica.
à liberdade humana.
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