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Pequenos trabalhadores                                                e retalham roupas e carnes, e arrancam talvez pedaços [...]
                                                                           sangrentos do corpinho estrebuchante.
           Em sua obra Política humana, coletânea de
     artigos e crônicas escritos nas décadas de 1910 e                            Acode afinal o guarda, contém os cães, e socorre a
     1920, o escritor Amadeu Amaral (1875-1929) deixou                     criança. Mas, antes houvesse deixado que morresse logo!
     registrado o destino de um menino de 12 anos que                      Ela só morreu muitas horas mais tarde [...].
     dormia no chão da fábrica em que trabalhava.
                                                                                  Pobre criança! [...]
                “Em São Paulo há leis que proíbem o trabalho das                  A tua agonia espantosa ainda poderia ser abençoada,
         crianças nas fábricas; mas as fábricas revogam as leis e          se fosse o sinal da redenção para esse imenso rebanho,
         aproveitam os trabalhos das crianças.                             composto de milhares de meninos-forçados como tu, que
                                                                           desabrocham frouxamente para a vida, numa atmosfera
                São essas uns operários ideais: fracos, mas espertos,      escura [...] de malvadez, de insensibilidade e de hipocrisia.
         tímidos, respeitosos; governam-se facilmente; ganham                     A tua morte seria quase bela no seu horror, se ti-
         pouco. Venha, pois, quanto mais se puder arranjar desta           vesse o poder de lançar uma sincera, religiosa rajada de
         lenha tenra e preciosa, que arde bem e custa barato! [...]        piedade, de arrependimento e de ternura através dessa
         Labutem monotonamente em cantos escuros de galpão, a              sociedade estéril e chata, fútil e feroz, que esmaga e devora
         dobrar impressos, verguem e suem ao peso de cargas, ma-           impassível os renovos e as flores da própria vitalidade.
         nobrem mecanicamente, a cochilar, ao pé de um aparelho                   Mas, pobre criança! A tua tragédia parece que nem
         estúpido, tostem-se ao calor de uma caldeira ou ao bafo de        sequer foi percebida...
         um forno, absorvam gases, ácidos, sais e poeiras nocivas,                É certo que os jornais a noticiaram – rapidamente, como
         besuntem-se de graxas e tintas, encurvem-se, repuxem-se,          cumpria em caso tão breve, tão simples e tão ‘desagradável’.
         torçam-se e esfalfem-se na repetição indefinida de posi-                 Mas a história não abriu o mínimo sulco na cons-
         ções forçadas e de movimentos excessivos, percam a cor            ciência da população. [...]
         e a alegria, tomem ares pávidos de cãezinhos maltratados,                Mas por que essa indiferença? É simples. A popu-
         ou ares opacos de homens sem mais inocência nem mais              lação andava atenta a outros objetos, mais sérios do que
         doçura, chatos e rudes... Oh! Que importa tudo isso, desde        a morte de uma criança [...].
         que as máquinas funcionem e a fábrica renda! [...]                       O assalto da ferocidade humana transfundida nos cães
                                                                           deu-te a amostra mais intensa e perfeita desta civilização ca-
                Vai daí, há dias, um pequeno de 12 anos, cansado,          nina, que organizou o crime, e para a qual o amor e a doçura
         ao fim do trabalho, adormeceu num canto da fábrica, e             são vergonha; mas, em seguida, lançou-te para o outro mun-
         lá ficou esquecido. [...]                                         do, onde continuarás o teu sono tranquilo, e talvez – quem
                                                                           sabe? – o teu sonho!”
                Mas na fábrica havia um guarda terrível. [...]
                Ora, o guarda, quando a noite entra fechada, saiu,            AMARAL, Amadeu. Política humana. São Paulo: Hucitec, 1976. p. 43-
         como de costume, a percorrer a fábrica, levando os seus               47. In: SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole: São Paulo,
         belos cães por diante. Os molossos correm [...], farejam         sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das
         e, de repente, dão com o pequeno adormecido. Estacam,
         ladram e raivam [...] e acabam por investir contra o menino                                                              Letras, 2000. p. 148-150.
         que, naturalmente já acordado, se recolhia transido de
         pavor, defendendo-se com os braços, e mordem furiosos,        Molosso: espécie de cão de fila usado para caçar e para guardar o gado.

     Veja respostas e orientações  ATIVIDADES
        no Manual do Professor.

         ANALISAR                                                      em exames vestibulares do Brasil. De caráter argu-
     1.	 Cite três razões apresentadas pelo texto para o emprego       mentativo, tem como objetivo defender um ponto de
                                                                       vista sobre determinado assunto relevante apresen-
         do trabalho infantil nas fábricas de São Paulo, apesar        tando evidências que sustentem a opinião que está
         das leis que proibiam essa prática.                           sendo defendida.

     2.	 Interprete a ironia deste trecho:                             Agora, você vai criar um artigo de opinião sobre uma
                “Que importa tudo isso, desde que as máquinas          das três questões a seguir.
                                                                       a)	A violência adotada na fase jacobina da Revolu-
         funcionem e a fábrica renda!”.
                                                                           ção Francesa era necessária para destruir o Antigo
     3.	 A que civilização canina o autor se refere no texto?              Regime?
     4.	 Releia o oitavo parágrafo do texto e interprete o signifi-    b)	Podemos considerar a Primeira República no Brasil um
                                                                           regime comprometido com a construção da cidadania
         cado da expressão “imenso rebanho” nessa passagem.                e da democracia?
                                                                       c)	A Revolução Russa poderia ter caminhado para um
         CRIAR UM ARTIGO DE OPINIÃO                                        desfecho diferente do que foi o regime stalinista?
     5.	 O artigo de opinião é um gênero textual frequente-

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