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Raison d’être: “razão de ser”, em stalinista – e do descaso de certos regimes políticos com os direitos civis. Isso teria
francês. reforçado a ideia liberal de que a liberdade só teria início onde a política terminasse.
Na filosofia política moderna, como vimos, os pactos ou contratos sociais
exigiriam que os indivíduos abdicassem de parte de sua liberdade natural em
troca de segurança, para que a sociedade politicamente organizada se consti-
tuísse. Nesse aspecto, a sociedade política seria, de certo modo, incompatível
com a liberdade, pelo menos com a liberdade plena. Mas Arendt tinha uma
compreensão diferente desse processo. Para ela,
“[...] ação e política, entre todas as capacidade e potencialidade da vida humana, são as únicas
coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade, e é
difícil tocar em um problema político particular sem, implícita ou explicitamente, tocar em um
problema de liberdade. [...] A liberdade [...] é na verdade o motivo por que os homens convivem
politicamente organizados. Sem ela, a vida política como tal seria destituída de significado. A
raison d’être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação”.
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 191-192.
De acordo com Hannah Arendt, a liberdade é a razão de ser da política, o
que nos faz lembrar do filósofo Aristóteles, que caracterizava o ser humano
como um ser racional e político. Era no espaço público da cidade, no palco da
política, que o ser humano agia livremente, de modo que os seres livres e iguais
podiam existir de forma plena, usando o logos, a razão e o discurso.
A partir desse ponto de vista, a vida politicamente organizada não se ca-
racterizaria, conforme defendiam Locke e os liberais, como uma sociedade de
proprietários, tampouco como uma sociedade de trabalhadores ou operários,
como pensavam os marxistas. A esfera da pólis não se enquadra em nenhuma
dessas definições, uma vez que ela seria o campo da liberdade.
Sem liberdade não poderia haver política, porque a liberdade seria a inspi-
radora das ações humanas no âmbito coletivo; em contrapartida, sem política,
foro da expressão do raciocínio, a liberdade também não poderia se manifestar.
↪ O poder e os poderes
O poder, seja de um indivíduo, seja de uma instituição, pode ser definido
como a capacidade de obter ou conseguir algo por influência, controle ou direito;
ele implica, no caso do poder social, uma relação de domínio entre as pessoas.
O poder não é algo que se tem, mas que se exerce entre indivíduos ou grupos,
e daí decorre o estreito vínculo entre poder e política.
Para o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984), as teorias políticas mo-
dernas e contemporâneas partem da concepção de que o poder é uma realidade
única, centralizada, que emana do rei, do soberano ou do Estado, cabendo à
sociedade apenas reproduzir as formas de domínio determinadas por esse poder.
Tal generalização, ainda que contenha algo de verdadeiro – pois o Estado,
suas leis e instituições podem ser entendidos como instrumentos de dominação –,
não é suficiente para compreendermos as relações de domínio presentes na
sociedade. Foucault investigou a prática dessas relações, estabelecidas social
e historicamente, e concluiu que, em vez de reduzidas a um poder central, elas
seriam disseminadas e se multiplicariam em numerosos micropoderes, alguns dos
quais incorporados pelas instituições do Estado. Haveria, então, muitos poderes
locais e específicos espalhados na sociedade.
Em certa medida, pode-se dizer que o filósofo francês adotou uma meto-
dologia de investigação contrária à tradição. Ele partiu de poderes periféricos
e concretos para, depois, articulá-los com o poder institucional e jurídico do
Estado. Investigou o funcionamento da rede de poderes da sociedade, a do-
minação entre os indivíduos – seus mecanismos e discursos, suas técnicas e
táticas – e o modo como as pessoas, seus comportamentos e seus corpos
seriam subjugados, controlados e determinados.
Foucault estudou as relações de poder desenvolvidas nas prisões, nas
escolas e nos hospitais psiquiátricos, investigou os saberes envolvidos nelas e
abordou os mecanismos de exclusão da loucura, de controle da sexualidade e da
vigilância de prisioneiros. Em suas pesquisas, destacou dois aspectos que fogem
238 UNIDADE 4: O MUNDO EM TRANSFORMAÇÃO