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© OPPENHEIM, MERET/LICENCIADO POR AUTVIS, BRASIL, 2024. ↑ Objeto, café da manhã envolto entretanto, o calor, a dor e a doçura não estão no objeto percebido, mas são
SCALA, FLORENÇA ‑MUSEU DE ARTEMODERNA, NOVAYORK em pele (1936), obra de Meret sensações provocadas por ele. Por isso, o filósofo as chama de qualidades
Oppenheim. Ao envolver tais secundárias.
objetos com pele de animal, o
artista causa uma perturbação Para a teoria do conhecimento lockeana, as qualidades primárias de um
no espectador, pois manipula sua limão são a de ter uma extensão e a de apresentar determinada consistência
percepção. Independentemente ou solidez. O gosto azedo dessa fruta, entretanto, não está no limão. Ou seja,
desse efeito, o objeto apresenta o limão tem determinadas características originais que provocam – ou têm o
qualidades primárias, como a poder de provocar – o gosto ou a ideia de azedo.
extensão e a consistência. Já
sua temperatura, sua cor e seu Assim, as ideias do ser humano vêm das sensações externas e internas.
odor compõem as características Dependem, por um lado, do poder que as coisas externas têm de afetar o
secundárias. indivíduo por suas qualidades primárias ou secundárias e, por outro, da capa-
cidade humana de percebê‑las e de refletir sobre elas.
↪ Ideias simples e complexas
Há outra classificação importante concebida por Locke a respeito das
ideias: elas podem ser simples ou complexas. Ideias simples são aquelas que
não contêm mistura, que se apresentam na mente de maneira clara, distinta
e uniforme, e que, portanto, não podem ser compartimentadas, como a ideia
de brancura advinda de uma rosa ou de uma camisa brancas. Essa ideia é
simples e não pode ser dividida ou separada em partes. Outros exemplos de
ideias simples: maciez, dureza, frieza, unidade, prazer e dor.
Quando o ser humano está de posse de ideias simples, pode formar
ideias complexas, ou seja, comparar ideias simples, associá‑las ou disso-
ciá‑las umas das outras, uni‑las ou separá‑las, relacionando‑as das mais
diversas maneiras.
Por exemplo, da ideia simples de unidade, por meio de repetição, pode‑se
conceber a ideia complexa de par ou de dúzia.
ERNESTO REGHRAN/PULSAR IMAGENS ↪ A existência das coisas exteriores
↑ Turistas observam as Se compararmos a teoria do conhecimento de Locke à de Descartes,
Cataratas do Iguaçu e fotografam estudada no capítulo anterior, encontraremos muitas diferenças. A dúvida
com o celular. Foz do Iguaçu cartesiana radical leva inicialmente à negação da existência dos corpos e à
(PR), 2015. Para Locke, se elaboração da primeira certeza: a existência do eu ou da coisa pensante –
recebemos ideias – como a de “Penso, logo existo”. Era com ela que o filósofo francês pretendia construir as
água e de verde – em nossa bases do conhecimento seguro. Locke, por sua vez, se apoiava na existência
mente, algo exterior à mente de coisas exteriores aos seres humanos, evidenciada pelo fato de elas os
deve causá‑las. afetarem, causando‑lhes ideias.
“É a recepção atual de ideias de fora que nos adverte da existência de outras coisas e nos
permite conhecer a existência de algo, naquele instante, fora de nós, de algo que causa em nós
a ideia, mesmo que não saibamos nem imaginemos o que seja. Em nada diminui a certeza de
nossos sentidos e das ideias deles recebidas o fato de não sabermos qual via as produziria. Por
exemplo, enquanto escrevo, produz‑se em minha mente, pelo papel que afeta meus olhos, a
ideia chamada branco, não importa qual objeto a cause. Eu sei assim que essa qualidade ou
acidente (cuja aparição diante de meus olhos causa sempre essa ideia) realmente existe fora
de mim. A maior garantia do alcance de minhas faculdades é o testemunho de meus olhos,
próprios e únicos juízes, que confio ser tão certo que não ouso duvidar, enquanto escrevo,
de que vejo branco e preto, realmente existentes e causando em mim uma sensação, assim
como eu não duvidaria que ao escrever movo minha mão.”
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 693‑694.
Se recebemos ideias de fora, algo causa ideias em nós. Podemos não saber
o que esse algo é realmente. No entanto, não podemos negar sua existência
nem as qualidades que nos afetam. Em outras palavras, as ideias advêm das
qualidades primárias do objeto observado, e essas qualidades nos afetam. O
branco do papel, por exemplo, modifica nossa mente ou produz nela ideias
dessa qualidade, e, por isso, sabemos que o objeto existe fora de nós, mesmo
que seja muito diferente daquele que percebemos pela experiência.
CAPÍTULO 13: EMPIRISMO: OS SENTIDOS E O CONHECIMENTO 151