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“Nós supomos, mas nunca conseguimos provar, que deve haver uma semelhança entre os
objetos de que tivemos experiência e os que estão além do alcance de nossas descobertas. [...] A
razão jamais pode nos mostrar a conexão entre dois objetos, mesmo com a ajuda da experiência
e da observação de sua conjunção constante em todos os casos passados. Portanto, quando a
mente passa da ideia ou impressão de um objeto à ideia de outro objeto, ou seja, à crença neste,
ela não está sendo determinada pela razão, mas por certos princípios que associam as ideias
desses objetos, produzindo sua união na imaginação.”
HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos
assuntos morais. São Paulo: Editora Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 2001. p. 120‑121.
A experiência pode nos informar de uma conjugação constante entre dois
eventos, isto é, de uma ocorrência que é sempre seguida de outra. Porém, isso
não demonstra que há necessidade racional ou lógica de que um fenômeno
decorra de outro e que permita, portanto, a generalização de um caso particular
percebido. Vamos entender melhor essas afirmações.
FERNANDO GONSALES/ACERVO DO ARTISTA
Veja respostas e orientações ↑ Cão raivoso (2011), tirinha de Fernando Gonsales. Os garotos relacionam a espuma no focinho do cão à
no Manual do Professor. raiva, doença que causa salivação excessiva. Porém, descobrimos que o cachorro está apenas escovando os
dentes. De maneira bem‑humorada, a tirinha nos mostra que a conexão entre dois eventos – babar e estar
• Imagine que você é um contaminado pelo vírus da raiva, por exemplo – não é necessária.
cientista e acaba de saber
sobre a posição de Hume Como vimos, o conceito de necessidade lógica implica a ideia de que algo
em relação à causalidade. seja de determinada forma e não possa ser diferente. Há uma obrigatorieda-
Então, você resolve escrever de de algo ser de uma maneira e não de outra, como ocorre com o teorema
um texto curto para esse de Pitágoras. Em qualquer triângulo retângulo, o quadrado do comprimento
filósofo, explicando a im- da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos comprimentos dos catetos
portância desse princípio (a² = b² + c²). Em qualquer lugar do mundo e em qualquer tempo, um triân-
para a ciência. O que você gulo retângulo apresentará essas relações de comprimento, assim como um
escreveria? triângulo sempre terá três lados, e a negação dessas afirmações implicará
contradição.
Hume não encontra essa necessidade de tipo matemático nos aconteci-
mentos da natureza ou da sociedade. Como todo dia o Sol nasce, nossa ex-
periência indica que isso tornará a acontecer. Com toda probabilidade, o Sol
nascerá amanhã, mas esse não é um evento logicamente necessário. Podemos
pensar que um dia o Universo terá fim e o Sol não nascerá, e esse fato não
implicará uma contradição. E, mesmo que o Universo acabe, continuará sen-
do verdadeiro para um ser inteligente que qualquer triângulo tem três lados.
Dito de outra forma, não é possível demonstrar, por meio da razão, a ne-
cessidade da conexão causal entre dois eventos. Apenas pela experiência uni-
mos dois eventos distintos e estabelecemos uma relação entre eles. Isso é fei-
to não por alguma razão necessária, mas pela força do hábito. Habituamo‑nos
a estabelecer uma relação causal entre dois eventos que sempre aparecem
conjuntamente.
A crítica de Hume abalou princípios centrais de todas as teorias do co-
nhecimento, o que acabou por gerar certo ceticismo. Afinal, de que se pode
ter certeza sobre o mundo?
De muito pouco, segundo Hume. O que existe são eventos dos quais se
pode vislumbrar esta ou aquela frequência, uma ou outra relação de cons-
tância. A frequência e a constância, no entanto, não são necessárias, o que
significa que os acontecimentos ou as conexões entre eventos podem ser dife-
rentes, pois estão sujeitos ao acaso. Isso está muito distante da regularidade,
da imutabilidade e da certeza que se esperava do conhecimento científico.
156 UNIDADE 3:O MUNDO QUE CONHECEMOS