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em que percebemos determinadas qualidades, mas a percepção dessas qualidades
sensíveis não nos autoriza a afirmar que existam substâncias materiais além dos
sentidos. A frase que sintetiza o pensamento desse filósofo a respeito das coisas
sensíveis é: “Ser é ser percebido”. Ou seja, só existe o que é percebido, e perce-
bemos ideias ou sensações. Então, as coisas sensíveis só existem na mente como
ideias decorrentes da percepção. Fora da mente, elas não têm existência ou são
inconcebíveis. Por meio dessa compreensão, Berkeley tentou fundamentar o que
posteriormente ficou conhecido como empirismo imaterialista.
Essa argumentação evidencia a diferença entre o pensamento de Locke e o de
Berkeley também em relação às qualidades primárias. Na teoria lockeana, as coisas
têm qualidades primárias, independentes da percepção humana, que existem mes-
mo que não sejam percebidas. Essas qualidades primárias afetam nossa mente com
sensações (as qualidades secundárias), como a ideia de calor provocada pelo fogo.
Por sua vez, na teoria berkeliana, todas as qualidades, primárias ou secundárias,
são sensíveis, isto é, são percebidas. Dessa maneira, elas só podem ser concebidas
como percepções da mente, e não como algo exterior a ela.
↪ Os seres espirituais e a causa das ideias
Pelo que vimos até aqui, o sistema berkeliano admite a existência de ideias na
mente, e só na mente. Mas se a mente, que capta ideias, não é uma ideia, o que ela é?
“Coisa ou ser é o termo mais geral; compreende duas espécies distintas e heterogêneas,
que só têm comum o nome: espíritos e ideias; os primeiros são substâncias ativas e indivisíveis;
as segundas, seres inertes, transitórios, dependentes, não subsistentes em si mas em espíritos
ou substâncias espirituais.”
BERKELEY, George. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 36.
(Coleção Os Pensadores).
Há, então, dois tipos de coisa: o espírito e a ideia. Os seres espirituais ou
mentes percebem as ideias e estas são percebidas. Os primeiros são substâncias
ativas; as segundas são passivas e têm a existência dependente das mentes ou
espíritos. As coisas sensíveis só podem existir nos espíritos.
Por certo, uma coisa permanece obscura na teoria do conhecimento de
Berkeley. Se não existem coisas materiais e se, portanto, essas coisas materiais
não são a causa das percepções, qual é sua causa? Em outras palavras, se não
é, por exemplo, uma árvore material que produz em nós a ideia ou a percepção
de uma árvore ou a percepção de um conjunto de qualidades primárias reunidas
no nome “árvore”, o que seria?
A mente humana, como ser espiritual, pode captar as ideias sensíveis,
decorrentes da percepção, e atuar sobre elas, mas não pode criar as ideias
advindas da sensação. De onde, então, elas vêm? Além disso, a mente de cada
indivíduo tem determinadas sensações ou ideias e não abarca a totalidade das
coisas sensíveis que existem no mundo. Que espírito mantém a existência de
todas as coisas sensíveis ou ideias do mundo? O diálogo entre Hilas e Filonous,
da obra Três diálogos, esclarece‑nos essas questões.
“Hilas – Suponde que sois aniquilado. Não podeis conceber que continuem a existir as
coisas percepcionadas pelos sentidos?
Filonous – Posso; mas cumpre que existam numa outra mente. Quando nego que os sen-
síveis existam sem ser na mente, não entendo em particular a minha mente, senão que toda e
qualquer mente. As coisas têm – é bem manifesto – existência exterior à minha mente, pois
acho pela experiência que não dependem dela. Há, portanto, outra mente na qual existem nos
intervalos das percepções que tenho delas [...] segue‑se necessariamente que há uma Mente
onipresente e eterna, que conhece e compreende todas as coisas e no‑las apresenta à vista de
uma certa maneira, e de acordo com certas regras [...].”
BERKELEY, George. Três diálogos: entre Hilas e Filonous em oposição aos céticos e ateus. 2. ed. Coimbra: Atlântida,
1965. p. 92‑93.
As ideias das coisas naturais ou sensíveis são, então, produzidas no ser
humano pela Mente eterna: Deus. Ele é responsável por todas as sensações
humanas e pelas leis naturais, na teoria de Berkeley.
CAPÍTULO 13: EMPIRISMO: OS SENTIDOS E O CONHECIMENTO 153