Page 116 - PNLD 2026 - FILOSOFIA
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↪	 Uma filosofia crítica da realidade                                                    negados como seres plenos, ou o jovem, cuja situação
                                                                                          de miséria e opressão o deixa sem perspectivas. Nessa
      Para a filosofia da libertação, o centro de re-                                     medida, é uma filosofia que não se limita a pensar as
flexão é o ser humano e sua realidade existencial.                                        palavras, não reflete em um círculo fechado sobre si
De acordo com muitos pensadores dessa corrente,                                           mesmo, como os sistemas metafísicos e as filosofias
a tradição filosófica ocidental europeia baseia-se                                        da linguagem, mas recorre às palavras para pensar a
apenas nos textos e no pensamento autorreferente.                                         realidade e tentar transformá-la.
Como não pensa a realidade, ela é um conjunto de
ideias, noções, conceitos e sistemas teóricos que                                               E qual é a realidade dos povos latino­
ajudam a legitimar um poder político dominante.                                           ‑americanos? O passado colonialista e, no presente,
Em suma, é apenas ideologia.                                                              o capitalismo que se mantém dependente das gran-
                                                                                          des potências europeias e, em especial, dos Estados
           “Contra a ontologia clássica do centro, desde Hegel até                        Unidos. Continuar a lógica dos países “conquista-
    Marcus e, para mencionar o mais lúcido da Europa, levanta‑                            dores”, iniciada com a invasão europeia das terras
    -se uma filosofia da libertação da periferia, dos oprimidos, a                        americanas e mantida, sob outras roupagens, na
    sombra que a luz do ser não pode iluminar. Do não ser, do                             atual dependência econômica e subjugação política,
    nada, do outro, da exterioridade, do mistério do sem senti‑                           é perpetuar a desventura de ser oprimido e explo-
    do, partirá o nosso pensamento. Trata-se, portanto, de uma                            rado, de não ter uma existência plena, que implica a
    ‘filosofia bárbara’.”                                                                 liberdade de se autorrealizar como indivíduo, como
                                                                                          povo e como nação. DOC. 2
       DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação. São Paulo: Loyola; Piracicaba:
                                                                    Unimep, 1982. p. 21.        Ao se importar com o ser humano, que engloba
                                                                                          cada indivíduo e a humanidade como um todo, a fi-
      Na citação do filósofo argentino Enrique Dussel                                     losofia da libertação propõe-se criticar os discursos
(1934-2023), um dos principais pensadores da filosofia                                    filosóficos que obscurecem a realidade da opressão
da libertação, há um universo de sentidos. Vamos re-                                      e da exploração, que ideologicamente têm o papel
fletir sobre alguns deles para compreender aspectos                                       de reafirmar o domínio do poder ocidental. Por outro
importantes da filosofia da libertação.                                                   lado, a filosofia da libertação também deve consti-
                                                                                          tuir-se como instrumento de emancipação dos povos
      Em primeiro lugar, Dussel fala de uma ontologia                                     oprimidos, a começar pelos latino-americanos, sem
clássica do centro. Ontologia é um ramo da metafí-                                        esquecer, porém, todo indivíduo ou povo submetido à
sica que estuda o ser enquanto ser ou as condições                                        opressão das grandes potências.
de tudo o que existe. O centro da tradição filosófica
é a Europa. A filosofia da libertação insurge-se pre-                                     	↪	 Os Direitos Humanos e os
cisamente contra essa filosofia de tradição europeia                                          povos da América Latina
cujo foco de atenção é o ser.
                                                                                                As referências mais imediatas da história dos
      Em segundo lugar, a filosofia da libertação é,                                      Direitos Humanos são as Revoluções Inglesas (1640
portanto, a filosofia dos que estão fora do centro,                                       e 1688), a Independência dos Estados Unidos (1776)
nas margens do mundo ocidental, comandado pelos                                           e a Revolução Francesa (1789), todas influenciadas
Estados Unidos e pela Europa. Trata-se de uma filo-                                       por pensadores do século XVII ou do XVIII, o Século
sofia dos oprimidos pelo centro, dos que não foram                                        das Luzes.
alcançados pela luz ou pelos princípios do iluminismo,
como o direito à igualdade e à liberdade. Uma filosofia                                         Entre os principais documentos que serviram
dos que estão à sombra dessa luz, que foram negados                                       de subsídio para delimitar os Direitos Humanos
e considerados não seres por não corresponderem ao                                        estão a Declaração de Independência dos Estados
ser europeu − assim como Parmênides afirmava que o                                        Unidos (1776), a Declaração dos Direitos do Homem
não-ser não é, não existe, mas só existe o ser.                                           e do Cidadão (1789), redigida durante a Revolução
                                                                                          Francesa, e a Declaração Universal dos Direitos
      Por último, como se opõe ao projeto civiliza-                                       Humanos, aprovada pela Organização das Nações
tório europeu, a filosofia da libertação seria uma                                        Unidas (ONU), em 1948.
filosofia de bárbaros, pois “bárbaros” são todos
os que não compartilham os costumes, os valores                                           Direitos inalcançados
e o modo de ser dos europeus. Para a Europa, a
América Latina é bárbara, assim como é bárbara                                                  Os documentos que fundamentam os Direitos
toda ideia, teoria ou ação que visem à emancipa-                                          Humanos partem do princípio de que os seres hu-
ção dos povos que a constituem.                                                           manos são iguais e têm direitos inalienáveis, como
                                                                                          a liberdade e a igualdade. No entanto, a liberdade e
A práxis de libertação do oprimido                                                        a igualdade defendidas assumem um caráter liberal.

      A filosofia da libertação é, como qualquer filoso-                                        O discurso liberal é produto do sistema capita-
fia, um saber teórico, mas também é um saber crítico                                      lista. Esse discurso legitimou, por um lado, o poderio
voltado para a práxis dos oprimidos. Suas reflexões                                       e a dominação das grandes potências mundiais e,
estão dirigidas para a práxis de libertação do oprimido                                   por outro, a subjugação de vários povos, incluindo os
social e historicamente, seja ele uma pessoa, classe
ou nação. Por exemplo, a mulher, aviltada pela ideo-
logia e pela prática machistas, o negro e o indígena,

114 UNIDADE 2: O MUNDO EM MOVIMENTO
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