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“A humanidade incômoda”: arte e a abraçar a vida através da arte quando os assombrava
resistência em tempos infernais a morte pode inspirar em nós a resistência, a revolta, a
rebeldia da imaginação, não importa os tempos que nos
No texto a seguir, o filósofo argentino Eduardo calhe viver. Essa paixão fala do que significa não baixar a
Pellejero (1974) destaca a função da arte como cabeça nem sequer no cadafalso. E eu não consigo imagi-
instrumento de resistência à opressão e ao em- nar uma expressão mais engajada da arte, na verdade não
brutecimento do indivíduo e como expressão que consigo. A arte exige de nós um engajamento total (com
dá sentido à existência. o real), mas não há engajamento sem paixão – é disso
que falam todas essas histórias. Perante o horror, esses
“[...] o que pode significar a liberdade em condições artistas continuaram a fazer o seu trabalho, a cultivar a
de opressão, em estado de guerra, na clandestinidade? O imagem e a palavra, a fazer da vida algo pelo qual vale a
que é da soberania da arte quando é obrigada a recolher-se pena lutar – enquanto os homens se matavam entre si.
nos porões e nos sótãos? [...] Sobrepondo-se ao medo, respondendo ao terror por vias
travessas, pintaram, escreveram, pensaram. Contra a vio-
De Myriam Lévy só restou uma rainha de espadas, lência levantaram testemunho, aos discursos opuseram
torturada, aberta ao meio, esvaindo-se em sangue, mas metáforas. Na sua total inutilidade, na sua persistência
também, inesperadamente, florescendo. O que era ain- pueril, na sua heroica desesperança, travaram uma guerra
da capaz de florescer no coração desgarrado de Myriam à guerra. [...]
Lévy? Desenhada com carvão sobre um pedaço de papel,
a sua rainha ainda fala da vida no campo onde haveria Desprovidos de qualquer poder, os artistas nunca
de encontrar a morte. Esse testemunho espantoso e co- deixam de exercer uma certa potência, nem nas situações
movedor, que dá conta da fragilidade e da contingência mais desfavoráveis. Como Juan Gris, como Picasso, como
da existência, não quer ser visto como um monumento, Bonard e Matisse, muitos artistas continuaram a pintar
mas apenas como uma imagem, como um reflexo do durante a guerra – a pintar as mesmas coisas de sempre.
devir da nossa consciência. Logo, se trata menos de um O mundo não fazia sentido para eles sem a pintura. Como
rasto que de um sinal – a nós, resta-nos decifrá-lo. Com poderia o mundo renascer das cinzas se desistissem dessa,
os materiais que estavam ao seu alcance, muitos outros a sua paixão? [...]
homens e mulheres tentaram conjurar a escuridão no
meio do desastre. E mesmo quando grande parte dessas Ao contrário dos seus colegas, Roger Bissière deixou
obras tivessem por objeto a morte – como O triunfo, de de pintar no começo da guerra e, recolhido no interior do
Felix Nussbaum, também morto em Auschwitz –, falam país, se dedicou ao trabalho da terra, no qual encontrou
de uma vida intensa, que não admitia ser apagada sem a força para resistir. [...] Numa carta dirigida ao seu filho,
resistência. quase já no final da guerra, escreveu: ‘Nas suas horas de
solidão, faça como eu, filho, pense na pintura, pense em
[...] É possível deslocar a luta para o terreno das quadros que gostaria de pintar, acumule em você o desejo
imagens e das palavras? Pode ser a arte, como afirmara de criar algo. Isso por si só enche a vida e, apesar de todas
Picasso, “um instrumento de guerra contra o inimigo”? as misérias, dá um sentido à existência, que sem a pintura
Em 1914, a arte e o pensamento alimentavam a guerra seria desesperadamente vazia’.”
(Bergson, Cendrars, Apollinaire e Faure numa trincheira,
Kandinsky, Marc e Mann na outra). Em 1939, lhe oferecem PELLEJERO, Eduardo. “A humanidade incômoda”: arte e resistência
a única resistência que parece possível. Não há lições a em tempos infernais. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
extrair do que aconteceu nos campos – do horror se segue Pará (IHGP), Belém, v. 4, n. 2, p. 213-224, jul./dez. 2017. Disponível em:
qualquer coisa. Mas a paixão daqueles que continuaram https://ihgp.net.br/revistaojs/index.php/revihgp/article/view/169/137.
Acesso em: 18 set. 2024.
Veja respostas e orientações ATIVIDADES
no Manual do Professor.
ANALISAR CRIAR UMA PRODUÇÃO ARTÍSTICA
1. Myriam Lévy viveu na França ocupada pelos nazistas. 4. Os sentimentos transmitidos pela arte, bem como a
Em 1941, ela desenhou Uma carta de jogo de tarô em mensagem que ela comunica em contextos dramáticos
um campo de concentração, onde morreu. Releia a como guerras e revoluções, podem variar de acordo
descrição da imagem feita pelo autor e procure recriá- com a condição social e a posição política do artista.
-la com base no que você imaginou, considerando as Forme um grupo com três colegas e escolham uma das
informações que tem sobre a obra e a história pessoal revoluções estudadas nesta unidade para criar duas
de Myriam Lévy. produções artísticas. Escolham a técnica e a linguagem
que desejarem: desenho, quadrinhos, fotografia, vídeo,
2. Uma das questões propostas pela estética é a da fun- colagem, escultura em argila etc. Procurem expressar
ção da arte. Que funções da arte o autor destaca em diferentes pontos de vista e percepções do mesmo
seu texto? acontecimento histórico.
3. Com base no que você estudou nesta unidade, aponte
outras funções que a arte pode ter.
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