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Jeca Tatu, preconceito e identidade A pátria de chuteiras
nacional “O povo já não se julga mais um vira-lata. Sim, ami-
gos: — o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele
“Caricatura do caipira brasileiro, o Jeca é um dos já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes
mais conhecidos personagens de nossa cultura. De caboclo pessoais e humanas. [...]
preguiçoso, parasita e indolente à vítima da doença, a
trajetória do matuto desenvolvido por [Monteiro] Lobato E a quem devemos tanto? [...] Graças aos 22 joga-
está relacionada ao papel conferido às políticas de saúde dores, que formaram a maior equipe de futebol da Terra,
pública e de educação no desenvolvimento econômico e em todos os tempos, graças a esses jogadores, dizia eu, o
social do país. Trata-se de uma das mais fortes represen- Brasil descobriu-se a si mesmo. [...]
tações sociais de nossa identidade, em que se articula o
retrato pobre, ignorante e doente da sociedade [...]. Vejam como tudo mudou. A vitória passará a influir
em todas as nossas relações com o mundo. Eu pergunto:
Quase todos os pensadores do período, que podemos — que éramos nós? Uns humildes. O brasileiro fazia-me
datar entre 1870 e 1930, pelo menos em algum momento lembrar aquele personagem de Dickens que vivia batendo
de suas vidas, pensaram a miscigenação racial como um no peito: — ‘Eu sou humilde! [...]’.
problema a ser solucionado. [...]
Mas vem a deslumbrante vitória do escrete, e o bra-
Ao criar o Jeca Tatu, um provável modelo do ho- sileiro já trata a namorada, a mulher, os credores de outra
mem do campo, Lobato estava, ao menos, de acordo com maneira; reage diante do mundo com um potente, um
o pensamento social dominante na passagem do século irresistível élan vital. E vou mais além: — diziam, de nós,
XIX para o século XX. Esse pensamento adotava as teorias que éramos a flor de três raças tristes. A partir do título
científicas surgidas na Europa para pensar a identidade mundial, começamos a achar que a nossa tristeza é uma
cultural brasileira. Para tais ideias cientificistas, o clima, a piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios.
localização geográfica e a raça determinavam a evolução Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo embelezou-nos. [...]
e a hierarquia das sociedades humanas.
Amigos, na Suécia [...] roubaram a gente, bifaram
Neste momento, Lobato denunciava uma determi- os nossos gols, a nossa camisa. Mas tudo inútil, porque o
nada corrente de interpretação dos elementos nacionais, Brasil apresentou o maior escrete do universo, segundo
denominada por ele de ‘caboclismo’, e atribuía ao Jeca, os mais exigentes críticos do mundo. Por fim, a lição do
espécie degenerada em sua origem mestiça e adaptada meu personagem. Ele ensinou que o brasileiro é, sim, quer
ao ambiente natural, a responsabilidade por todos os queiram quer não, ‘o maior’.”
problemas do universo rural. [...]
RODRIGUES, Nelson. “É chato ser brasileiro” – crônica (atualíssima) de
[...] Lobato estava inserido em seu tempo, produ- Nelson Rodrigues. Revista Pazes, 2 jul. 2018. Disponível em: https://www.
zindo e veiculando ideias que, naquele momento, eram
expressões de um ‘racismo à brasileira’.” revistapazes.com/16518-2/#goog_rewarded. Acesso em: 22 jul. 2024.
SANTOS, Ricardo A. Lobato, os jecas e a questão racial no pensamento Élan: entusiasmo; disposição.
social brasileiro. Portal Geledés, 29 out. 2010. Disponível em: https://
www.geledes.org.br/lobato-os-jecas-e-questao-racial-pensamento- Escrete: seleção; grupo de atletas.
social-brasileiro/. Acesso em: 22 jul. 2024.
Veja respostas e orientações ATIVIDADES
no Manual do Professor.
COMPREENDER 5. Qual é o significado atribuído por Nelson Rodrigues
à vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de
DOC. 1 Futebol de 1958?
1. Segundo o texto, como Jeca Tatu é representado na 6. Como o futebol contribuiu para a construção da iden-
obra de Monteiro Lobato? tidade nacional brasileira?
2. Segundo o autor, como as teorias raciais, muito em RETOMAR
voga nas primeiras décadas do século XX no Brasil,
influenciaram o escritor Monteiro Lobato? 7. Responda às questões-chave do início do capítulo.
a) O que é identidade nacional?
3. O que é o “racismo à brasileira” ao qual o autor se refere? b) Que elementos participaram da construção da identi-
dade nacional brasileira?
DOC. 2 c) O que nos faz ser brasileiros?
4. Em sua opinião, o que o autor quis dizer com a expressão
"vira-lata" ao se referir ao povo brasileiro?
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