Page 123 - PNLD 2026 - FILOSOFIA
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↪	 O que dizem os povos                                                        Tudo é natureza                                                                             EDSON SATO/ISA SOCIO AMBIENTAL
    calados?
                                                                                ↑ Para os povos indígenas, não há separação entre humanos e
      O que dizem os povos calados e massacrados                                natureza. Aldeia Demini do povo Yanomami, no Amazonas. Foto de
durante tanto tempo?                                                            2005.

           “Por quererem possuir todas as mercadorias, foram                          O trato com a terra e suas filhas, as plantas, é
    tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se es‑                       uma característica primordial dos povos indígenas bra-
    fumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as                  sileiros e evidencia as diferenças entre esses povos e
    outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os                  o chamado mundo “civilizado”. Em nosso pensamento,
    brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar                   o mundo da cultura, propriamente humano, é contra-
    a terra e a sujar os rios. Começaram onde moravam seus                      posto ao da natureza. Já para os povos indígenas, ao
    antepassados. Hoje já não resta quase nada de floresta em                   contrário, tudo é natureza, e o indivíduo se identifica
    sua terra doente e não podem mais beber a água de seus                      e é identificado nela. Por exemplo, a formulação “nós:
    rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra.”                     eu, você, a montanha e o rio”, comum entre os povos
                                                                                indígenas, nos causa estranhamento porque utilizamos
      KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã        o pronome “nós” para indicar um conjunto de pessoas,
                      yanomami. São Paulo, Companhia das Letras, 2015. p. 407.  humanos, e não coisas ou elementos da natureza. Um
                                                                                indígena sente que pertence à totalidade da natureza
      O pensar yanomami de Davi Kopenawa (1956-)                                e que dialoga com ela – conversa com as árvores,
denuncia a um só tempo que a forma básica da nos-                               as montanhas e os rios, reconhece a personalidade
sa sociedade, da produção capitalista, é a mercado-                             desses elementos da natureza, por meio dos quais
ria, que nosso modo de existência e imaginário são                              reencontra sua ancestralidade, seus pais e avós.
tomados pela preocupação de acumular mercadoria
e que tal forma de organização e de pensamentos                                            “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos
leva à devastação da natureza. Somos um povo que                                    em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há fu‑
namora a mercadoria.                                                                turo a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava
                                                                                    aqui. Gosto de pensar que todos aqueles que somos capazes
           “Para eles, essas coisas [as mercadorias] são mesmo como                 de invocar como devir são nossos companheiros de jorna‑
    namoradas! Seu pensamento está preso a elas que se as estra‑                    da, mesmo que imemoráveis, já que a passagem do tempo
    gam quando ainda novas ficam com raiva a ponto de chorar!                       acaba se tornando um ruído em nossa observação sensível
    São de fato apaixonados por elas! Dormem pensando nelas,                        do planeta. [...] estamos em todos os lugares, pois em tudo
    como quem dorme com a lembrança saudosa de uma bela                             estão nossos ancestrais, os rios-montanhas, e compartilho
    mulher. Elas ocupam seu pensamento por muito tempo, até                         com vocês a riqueza incontida que é viver esses presentes.”
    vir o sono. E depois ainda sonham com seu carro, sua casa, seu
    dinheiro e todos os seus outros bens – os que já possuem e os                      KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras,
    que desejam ainda possuir. Assim é. As mercadorias deixam os                                                                                              2022. p. 11.
    brancos eufóricos e esfumaçam todo o resto em suas mentes.
    Nós não somos como eles. [...] Se os brancos pudessem, como                 Criadores de ausências
    nós, escutar outras palavras que não as da mercadoria, saberiam
    ser generosos e seriam menos hostis conosco. Também não                           A maneira como o ocidental entende a natureza
    teriam tanta gana de comer nossa floresta.”                                 e se relaciona com ela tem origens muito antigas,
                                                                                mas se consolidou com a instituição da ciência mo-
      KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã        derna, o estabelecimento do capitalismo e o de-
                 yanomami. São Paulo, Companhia das Letras, 2015. p. 413-414.   corrente predomínio da produção de mercadorias.
                                                                                Filósofos que subsidiaram teoricamente a constitui-
      As mercadorias nos deixariam eufóricos. Elas                              ção da ciência moderna, como Francis Bacon e René
tomariam a nossa mente e nos fariam comedores                                   Descartes, cada um a sua maneira, já afirmavam
de florestas. Seríamos, então, comedores de flo-                                que é preciso conhecer a natureza para dominá-la.
restas e estaríamos em luta contra os protetores                                O propósito era, e ainda é, estender o poder e o
da floresta. A essas duas funções antagônicas                                   domínio do ser humano sobre o Universo por inter-
correspondem mundos diversos, formas de ser e                                   médio da ciência, um instrumento para descobrir a
de estar distintos.                                                             regularidade dos fenômenos e as leis naturais com
                                                                                o objetivo de dominar a natureza e explorá-la.
     PARA ASSISTIR

    Davi Kopenawa, um Xamã yanomami
    Jornalismo TV Cultura.
    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5byN3rhbZKs.
    Acesso em: 15 jul. 2024.
    Duração: 27min44

    Documentário/Entrevista no qual Davi Kopenawa fala do imaginário mítico
    do povo yanomami, da trajetória de luta contra o garimpo e a demarcação
    das terras indígenas e da situação atual de seu povo. Participações de
    Ailton Krenak, Sebastião Salgado e diversos artistas.

                                                                                CAPÍTULO 11: FILOSOFIA BRASILEIRA: SABERES E PENSAMENTOS                                                                    121
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