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↪ O que dizem os povos Tudo é natureza EDSON SATO/ISA SOCIO AMBIENTAL
calados?
↑ Para os povos indígenas, não há separação entre humanos e
O que dizem os povos calados e massacrados natureza. Aldeia Demini do povo Yanomami, no Amazonas. Foto de
durante tanto tempo? 2005.
“Por quererem possuir todas as mercadorias, foram O trato com a terra e suas filhas, as plantas, é
tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se es‑ uma característica primordial dos povos indígenas bra-
fumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as sileiros e evidencia as diferenças entre esses povos e
outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os o chamado mundo “civilizado”. Em nosso pensamento,
brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar o mundo da cultura, propriamente humano, é contra-
a terra e a sujar os rios. Começaram onde moravam seus posto ao da natureza. Já para os povos indígenas, ao
antepassados. Hoje já não resta quase nada de floresta em contrário, tudo é natureza, e o indivíduo se identifica
sua terra doente e não podem mais beber a água de seus e é identificado nela. Por exemplo, a formulação “nós:
rios. Agora querem fazer a mesma coisa na nossa terra.” eu, você, a montanha e o rio”, comum entre os povos
indígenas, nos causa estranhamento porque utilizamos
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã o pronome “nós” para indicar um conjunto de pessoas,
yanomami. São Paulo, Companhia das Letras, 2015. p. 407. humanos, e não coisas ou elementos da natureza. Um
indígena sente que pertence à totalidade da natureza
O pensar yanomami de Davi Kopenawa (1956-) e que dialoga com ela – conversa com as árvores,
denuncia a um só tempo que a forma básica da nos- as montanhas e os rios, reconhece a personalidade
sa sociedade, da produção capitalista, é a mercado- desses elementos da natureza, por meio dos quais
ria, que nosso modo de existência e imaginário são reencontra sua ancestralidade, seus pais e avós.
tomados pela preocupação de acumular mercadoria
e que tal forma de organização e de pensamentos “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos
leva à devastação da natureza. Somos um povo que em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há fu‑
namora a mercadoria. turo a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava
aqui. Gosto de pensar que todos aqueles que somos capazes
“Para eles, essas coisas [as mercadorias] são mesmo como de invocar como devir são nossos companheiros de jorna‑
namoradas! Seu pensamento está preso a elas que se as estra‑ da, mesmo que imemoráveis, já que a passagem do tempo
gam quando ainda novas ficam com raiva a ponto de chorar! acaba se tornando um ruído em nossa observação sensível
São de fato apaixonados por elas! Dormem pensando nelas, do planeta. [...] estamos em todos os lugares, pois em tudo
como quem dorme com a lembrança saudosa de uma bela estão nossos ancestrais, os rios-montanhas, e compartilho
mulher. Elas ocupam seu pensamento por muito tempo, até com vocês a riqueza incontida que é viver esses presentes.”
vir o sono. E depois ainda sonham com seu carro, sua casa, seu
dinheiro e todos os seus outros bens – os que já possuem e os KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras,
que desejam ainda possuir. Assim é. As mercadorias deixam os 2022. p. 11.
brancos eufóricos e esfumaçam todo o resto em suas mentes.
Nós não somos como eles. [...] Se os brancos pudessem, como Criadores de ausências
nós, escutar outras palavras que não as da mercadoria, saberiam
ser generosos e seriam menos hostis conosco. Também não A maneira como o ocidental entende a natureza
teriam tanta gana de comer nossa floresta.” e se relaciona com ela tem origens muito antigas,
mas se consolidou com a instituição da ciência mo-
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã derna, o estabelecimento do capitalismo e o de-
yanomami. São Paulo, Companhia das Letras, 2015. p. 413-414. corrente predomínio da produção de mercadorias.
Filósofos que subsidiaram teoricamente a constitui-
As mercadorias nos deixariam eufóricos. Elas ção da ciência moderna, como Francis Bacon e René
tomariam a nossa mente e nos fariam comedores Descartes, cada um a sua maneira, já afirmavam
de florestas. Seríamos, então, comedores de flo- que é preciso conhecer a natureza para dominá-la.
restas e estaríamos em luta contra os protetores O propósito era, e ainda é, estender o poder e o
da floresta. A essas duas funções antagônicas domínio do ser humano sobre o Universo por inter-
correspondem mundos diversos, formas de ser e médio da ciência, um instrumento para descobrir a
de estar distintos. regularidade dos fenômenos e as leis naturais com
o objetivo de dominar a natureza e explorá-la.
PARA ASSISTIR
Davi Kopenawa, um Xamã yanomami
Jornalismo TV Cultura.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5byN3rhbZKs.
Acesso em: 15 jul. 2024.
Duração: 27min44
Documentário/Entrevista no qual Davi Kopenawa fala do imaginário mítico
do povo yanomami, da trajetória de luta contra o garimpo e a demarcação
das terras indígenas e da situação atual de seu povo. Participações de
Ailton Krenak, Sebastião Salgado e diversos artistas.
CAPÍTULO 11: FILOSOFIA BRASILEIRA: SABERES E PENSAMENTOS 121