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“A concepção comunitária ou recíproca quanto à REPRODUÇÃO/FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, RIO DE JANEIRO, RJ Deus e o diabo na Terra de Santa Cruz
produção e ao consumo, a produção de caráter doméstico,
uma sociedade na qual o status não derivava da capacidade Em muitos dos relatos sobre o território que
econômica e a subordinação da economia a outras formas viria a ser chamado Brasil, observa-se uma espécie
de organização social determinaram a reação dos índios às de polarização. Se, por um lado, a natureza parece
demandas dos europeus. Os diferentes pontos de vista dos confirmar todo o imaginário do paraíso terreno, por
portugueses e dos índios com respeito à natureza e aos ob‑ outro, os indígenas são tidos como selvagens, bár-
jetivos do trabalho e da produção encontram-se subjacentes baros, que vivem bestialmente, dotados de outra
à mudança no relacionamento entre eles [...].” humanidade, vista por muitos como monstruosa ou
animalesca. A terra era uma realização divina, mas
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na as práticas indígenas estariam próximas do demônio,
sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 42. porque não eram apenas irracionais, mas também
pecaminosas, vinculadas aos prazeres do corpo.
O confronto entre o modo de ser português
e os modos de ser indígena – diversificado entre A prática indígena mais abominada pelos euro-
os vários povos – era uma constante nas narrati- peus era a antropofagia. A antropofagia foi utilizada
vas dos viajantes e dos primeiros colonos. Entre para justificar a violência contra o indígena. DOC. 1 Na
as mais conhecidas estava a obra História da História da Província Santa Cruz, Gândavo viu na práti-
Província Santa Cruz a que vulgarmente chama‑ ca de comer os inimigos “cruezas diabólicas” próprias
mos Brasil, de Pero de Magalhães Gândavo, publi- de brutos animais desprovidos de razão. Na mesma
cada em 1576. Gândavo exaltava as qualidades da visão, muito tempo depois, em A missão dos carijós
terra brasileira, a fertilidade e o clima ameno, a (1605-1607), o padre jesuíta Jerônimo Rodrigues afir-
beleza da fauna e da flora, ao mesmo tempo que mou que os nativos “no comer carne humana são
muitas vezes descrevia os indígenas de maneira piores que cães”. Entre os jesuítas, era recorrente a
negativa, pois seus costumes eram estranhíssimos afirmação de que os indígenas eram o “povo do diabo”.
para os europeus.
Os indígenas Tupinambá, no entanto, não inge-
“A língua desse gentio de toda a costa é uma: [...] não se riam carne humana para saciar a fome, e sim como
acha nela ‘F’ nem ‘L’, nem ‘R’, coisa digna de espanto, porque parte de um ritual de antropofagia, no qual comiam
assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem seus inimigos por vingança. Ao matar o inimigo, o
sem Justiça e desordenadamente.” guerreiro recebia novos nomes, ganhava prestígio e
vingava parentes mortos, ritual que era celebrado
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil. São Paulo: na aldeia com a presença de indígenas de aldeias
Obelisco, 1964. p. 87. aliadas. Todos comiam a carne do inimigo vencido,
para, assim, se considerar vingados.
Quinze anos mais tarde, o senhor de engenho
do Recôncavo Baiano, Gabriel Soares de Souza, afir- No choque entre esses dois mundos, os portu-
mou o mesmo em sua obra Tratado descritivo do gueses se perguntavam como seu empreendimento,
Brasil. Construía-se, assim, uma narrativa negativa a colonização, poderia frutificar em uma terra tão
sobre os indígenas. boa, paradisíaca, mas com pessoas que viviam de
maneira tão irracional ou mesmo desumana. Em ou-
↑ O canibalismo de indígenas do Novo Mundo foi um tema recorrente tras palavras: como podiam prosperar com o jeito de
entre os relatos dos viajantes europeus do século XVI. Nesta gravura, de ser do indígena? No horizonte mental do colonizador,
1592, Théodore de Bry representou a antropofagia dos Tupinambá com só havia uma resposta: os indígenas tinham de ser
base nos relatos do alemão Hans Staden, aventureiro que viveu entre civilizados e salvos pelos portugueses. Era preciso
os indígenas como prisioneiro. humanizá-los a qualquer preço, isto é, estender a
humanidade europeia à existência desse povo que,
para os conquistadores, era sem justiça, sem cren-
ça, sem razão e com práticas que o aproximavam
dos animais.
Veja respostas e orientações
no Manual do Professor.
• Imagine que você é um líder indígena brasileiro e tem
de escrever uma carta para Gândavo sobre as “cruezas
diabólicas” atribuídas aos povos originários. Escreva uma
carta breve, relatando as práticas e os costumes dos
povos originários.
Antropofagia: consumo de carne humana em âmbito ritual e religioso.
120 UNIDADE 2: O MUNDO EM MOVIMENTO